Tavam lá, em plena praça de Tabuí, o Cirino e o Pichula. Já que não tinham o que fazer, apreciavam o movimento de uma ou outra bicicleta, de dois ou três transeuntes, e de uma moçoila por hora até que passa um mancebo estranho, com uma perna da calça amarrada acima da botina, manquitolando. Apressado, desconfiado, olhando pros lados, como quem não quer ser visto... E o Cirino e o Pichula, como sempre, afiando a língua.21/08/2014
O TRIPLO ENGANO
Tavam lá, em plena praça de Tabuí, o Cirino e o Pichula. Já que não tinham o que fazer, apreciavam o movimento de uma ou outra bicicleta, de dois ou três transeuntes, e de uma moçoila por hora até que passa um mancebo estranho, com uma perna da calça amarrada acima da botina, manquitolando. Apressado, desconfiado, olhando pros lados, como quem não quer ser visto... E o Cirino e o Pichula, como sempre, afiando a língua.29/03/2012
Tem trololó na bitaca do Cirilo
A maior atração da bitaca do Cirilo não era pinga não. Era a sinuca. Para caber a mesa grandona, o comerciante teve que espichar o cômodo da venda. E lá ficava ele, comandando a sinuca e vendendo rapadura pra um, pão sovado pra outro, prato esmaltado prum terceiro, pedaço de fumo para um quarto, enquanto enricava pegando um trocado daqui e outro dali, anotando tudo num caderninho onde tava escrito “dever de casa” e “Brasil, um país que vai pra frente”, dado por um programa do governo.
Chegava tardinha, antes do sol sumir, começava a juntar gente. Vizinhos, vaqueiros, peões, amigos, roceiros de tudo quanto é naipe, terminavam sua labuta diária e vinham bater ponto na venda do Cirilo. Uns para rezar o terço na igrejinha ao lado, comandados pela dona Rita, mas a maioria vinha era para jogar sinuca mesmo. Um Deus-nos-acuda. Prosório, risadas e a gritaria chegavam a atrapalhar as orações da turma da igrejinha. Naquela noite, o Tonico Vergina é quem ia puxar o terço. Brincando, conversando, fofocando, se ajoelharam, falando mal da vida alheia, se armaram do rosário e ficaram a postos para fazer o nome do Pai. Mas da cabeça do Tonico Vergina, não saia aquela moda de viola durante noites e noites tocada na vitrola do Cirilo, até afundar os sulcos do bolachão. A música começava com o refrão “Siriema do Mato Grosso, seu canto triste, me faz chorar...”. O nosso puxador de terço passava dias a pedaços de noite com esse refrão na cabeça. Foi por isso que, ao puxar o nome do Pai, no lugar de dizer as palavras de costume, o que saiu foi o refrão da moda de viola “çariema do Mato Grosso...”, enquanto se persignava. Aí o terço virou bagunça. As risadas não puderam ser contidas, nem com os psius e ameaças da dona Rita. O Tonico não sabia onde meter a cara e se persignava repetindo “perdão, meu Deus”, “perdão, meu Deus...”!
Terminada a reza, o povo começava a ralear, ficando só o pessoal da sinuca, revezando até a madrugada, enquanto o Cirilo, cansado e com sono, maldizia entre dentes “um dia indaacabo com a disgraça dessa sinuca. A merreca de lucro que ela me dá num há de fazê farta...”.
Naquela noite só ficaram os mais amigos do Cirilo. Resolveram aprontar. Esqueci de dizer que Cirilo era homem sistemático e brabo. Andava com faca na cintura e, enfiado num saco de farinha de mandioca, um revólver pronto para eventualidades, além de uma garrucha enferrujada, carregada, misturada com as lingüiças, penduradas no varal. Mais de 10 da noite, tarde demais da conta pro povo da roça, o Cirilo, como sempre, reclamando pros seus botões, se ajeitava em cima duns sacos de farinha, milho e açúcar, tirava as botinas espalhadeiras de chulé, e puxava o ronco, enquanto a turma continuava a jogatina. Quando viram que ele dormia a sono solto, apagaram o lampião e continuaram, no escuro, a fazer barulho, com bolas e tacos, conversando, rindo, soltando piadas. Até que um aprontou um escarcéu, borrifou cachaça em cima do dorminhoco e gritou ô Cirilo. O homem acordou, meio tonto, e, sem ver nada, naquela escuridão, foi logo perguntando, com a mão já segurando a peixeira:
- O quê? Oncotô?... O quê que foi, gente?
- Aí a moça procê atendê, Cirilo!
- Moça? Que moça, home?
- Aí no barcão, uai!
- No barcão? Num vejo nada, sô!
- Credo! Parece que tá cego! Tá inventano moda, home de Deus?
- Gente, num tô veno nada não! Devera! Juro por Deus! – gritou agoniado.
Da turma, uns riram, segurando-se, espremendo-se. Um deles, mais gaiato, todo romântico, falou:
- Cê num tá veno a lua lá fora, Cirilo? Tão bonita!...
Aí o vendeiro se desesperou mesmo.
- Gente! Tô cego!... Meu Deus do céu! Que será de mim e dos meus fio!?... Ô vida!...
Aí o povo não agüentou mais tanto estancamento. Foi risada pra todo lado, até que um desavisado resolveu acender um pito. Não deu outra. Cirilo descobriu a tramóia e o cacete comeu solto. Quando achou um isqueiro e acendeu o lampião, até encontrar a garrucha no meio da lingüiça, não tinha mais ninguém na venda. Todo mundo chispara, conhecendo a brabeza do homem.
Aquela foi um dia, em que a bitaca do Cirilo fechou antes da meia noite e ele pôde, após tanto tempo, no aconchego dos lençóis, chamar a dona Rita para um tête a tête, depois da raiva passada.
10/08/2009
Sem frango e sem farofa
No começo era muita amizade. O Esmeraldo era assim com o padre Anacleto e visitante assíduo da casa paroquial. Os dois, fortões, quando se encontravam, abraçavam-se fazendo festa e falando alto. Esmeraldo batia nas costas do vigário e dizia:
- Que purmão nos trinque pruma tuberculose, heim, padre?
O padre Anacleto não deixava por menos. Separava-se do abraço do amigo e rebatia, com seu sotaque italiano, dando um tapa no peito do Esmeraldo:
- E aqui dentro bate un coraçon bom para unenfarte, né?
Até que apareceu a pinimba. Numa certa missa, parece que o vigário negara à dona Matilde, a mulher do Esmeraldo, a comunhão, porque ela fora à missa sem o véu. Mas, se, para o vigário, aquilo era parte do ofício e passado era passado, Esmeraldo, mesmo depois de muito tempo, não esqueceu a desfeita e queria tirar forra. Ficou um ano convidando padre Anacleto para almoçar um franguinho na sua casa, ali na Rua do Assobio.
No domingo combinado, chegou o vigário, depois da missa das onze, com fome de dragão, doido pra devorar o franguinho caipira da dona Matilde. Esmeraldo recebe o visitante com a maior cerimônia e, com muita educação, oferece-lhe do vinho francês “Sang du boi” da melhor qualidade, a fim de abrir o apetite, enquanto começam a colocar os assuntos em dia.
Assim que avisam o almoço tá pronto, padre Anacleto já estava sem assunto e perdendo a paciência. Vão pra copa, onde a mesa está posta. O padre casca uma reza e um amém e ocupa o seu lugar. O próprio Esmeraldo vai buscar a comida. Trás duas panelas, uma com canjiquinha e outra com feijão. Senhor vigário acha estranha aquela gororoba para um domingo de frango frito ou de frango ao molho pardo, mas fica calado e resolve aguardar os acontecimentos, colocando um pouco de canjiquinha no prato enquanto esperava coisa melhor.
- Pai, já trazo o frango?
Era o Reginaldo, filho do Esmeraldo, parece que querendo quebrar o galho do padre e ganhar uns pontos com Deus, Nosso Senhor.
- Ainda não, fio! Per’um pôco!
E o visitante, com fome grande, com a pulga atrás da orelha, detona quase meia panela de canjiquinha, enquanto o Esmeraldo não pára de falar.
Lá vem o Reginaldo de novo.
- Agora, pai?
- Não, menino!
Depois de entornar bastante canjiquinha no bucho, na batina e na mesa, padre Anacleto resolveu comer um pouco de feijão, para variar, ainda esperançoso de ver chegar o frango, embora o assunto do Esmeraldo não tivesse fim. Mas chegou a um ponto em que o vigário não queria mais ver canjiquinha e nem feijão na frente. Enjoou daquela comida. Quando foi perguntado pelo Esmeraldo se queria mais, respondeu secamente:
- Quero não!
- Reginardo, meu fio! Traz o frango agora, vai! Digero!
Rapidamente chega o Reginaldo com o frango. Vivo. O penoso é colocado sobre a mesa para comer as sobras da canjiquinha que o padre Anacleto deixara cair. Daquele dia
