Quequé e Omézio andavam desanimados da vida. Sem dinheiro, sem emprego, poucos amigos, sem mulher... Aquela vida de mal ter roupa para vestir, andar de chinelo de dedo, comer arroz com rolinha variando pra tico-tico uma vez por dia, ver de tudo e não poder comprar nada, suspiros solitários por mulheres alheias, só ficando na mão, isso não era vida não...
- Ô Quequé, tô mais agüentano essa vida assim não! Tá runho demais da conta, sô!
- Nem eu, Mézio! Acho que o negoço é ir embora, home! Cê topa se mandá daqui cumigo?
Juntaram o pouco que tinham, numa malinha de papelão encerado, venderam umas galinhas e uma leitoinha, arrecadaram mais uns cobrinhos e meteram pé na estrada. A pé, para economizar. Até que pegaram carona, num caminhão boiadeiro, que ia para a Bahia.
- É pra lá memo que a gente vamo. Lá é bão que a gente num conhece ninguém. É lá que a gente vamo fazê a vida...
Gastaram três dias na viagem, comendo frango frito com farofa e pão de queijo, que levaram como matula, sonhando com Salvador. Passaram uma semana na rua e nada de emprego. Com a roupa suja e o corpo dolorido de dormir nas calçadas, resolveram alugar um quartinho, dos mais fuleiros, não muito distante da Praça Castro Alves. Compram, a preço de banana, um pequeno guarda-roupas usado, onde deixam trancada a malinha e saem, toda manhã, em busca de emprego.
No dia em que o dinheiro acabou, resolvem, na madrugada, dar o cano no senhorio e, saem de fininho, carregando seus bens, que se resumiam no guarda-roupas, trancado, com a malinha dentro. E vão para a Praça Castro Alves. Mas era noite de carnaval. Na Castro Alves pipocava de gente e, passando a cada hora, um trio elétrico diferente, com a multidão atrás, sacolejando, se pisando, se empurrando, formando uma onda humana. Quequé e Omézio entram, sem querer, empurrados, naquela onda de gente, com o guarda-roupa nas costas. Como todo baiano, em época de carnaval, leva tudo na flauta e inventa moda, a turma pensou que aquele caixote sendo carregado pelos dois franzinos, era mais uma moda. Foram entrando na brincadeira, enfiando gente e mais gente debaixo do guarda-roupas e logo, logo ele sumiu por cima da multidão. Quequé e Omézio, baixinhos e franzinos, não tiveram como seguir seu único bem. Com fome e com sede, cansados e doídos de levar empurrões e pisadas, sentam-se no meio-fio, maldizendo a sorte.
- É, Quequé, aqui tá pió que lá, no Tabuí...
- É Mézio... Sem dinheiro, sem guarda-roupa, sem malinha, sem roupa, sem documentos... E agora?
- Agora tamo num mato sem cachorro, fudidos e mal pagos. Se ficá o bicho come, se corrê o bicho pega...
- É, sô! Ô vida!
- Tamém, quem mandô a gente saí lá de Tabuí e vim pra essa disgraça aqui, né?
- É, sô!
Falavam gritado, embora um ao lado do outro. E os trios elétricos passando, com os foliões alegres, bem nutridos e cheios da canjebrina, fazendo inveja aos dois amigos que viam aquele mundo de esbanjamento sem acreditar no que viam. Estômago batendo palminhas, tamanha a fome.
- Mézio, tô cum fome demais da conta, sô!
- Eu tamém, Quequé! Quecagente faiz?
- A gente pede um cachorro quente na barraquinha, come e dá no pé... Quecocêacha?
- Vamo?
- Só se fô agora, uai!
Saem procurando um carrinho de cachorro quente, para dar o golpe, no sentido contrário ao da multidão, outra vez sendo empurrados, pisados e humilhados por aqueles bem de vida, de barriga cheia.
No carrinho de cachorro quente, nada conseguem. O dono era mais esperto.
- Só pagando antes!
Quequé e Omézio sentam de novo no meio-fio, assim num lugar mais afastado, e ficam apreciando o movimento, como se estivessem noutro mundo. Preocupados, tristes, revoltados, cansados, doídos e com sono. Até que acontece o inesperado.
- Quequé, cê tá veno o que tô veno?
- Âhn? O quê? Ondé?
- Óia pra lá!
Atrás do trio elétrico os dois vêem o guarda-roupas, passando de mão em mão, sobre o mar de gente. Cada folião, na ponta dos pés, dançando e tocando-o com as pontas dos dedos.
- Né pussíve, sô! Nosso guarda-ropa vortô!
- Vamo lá Mézio?
Foram. Pularam, cutucaram, chutaram, apanharam, bateram, choraram, xingaram, imploraram, mas tomaram o guarda-roupas do povo. O móvel foi carregado pela cidade durante umas quatro horas e voltara, para alegria dos dois amigos que foram mais que depressa conferir se a malinha tava lá dentro. Estava.
Um comentário:
Esses dois cabras tiveram sorte demais.
Será que não sabiam que a loucura começou na Bahia e depois é que se alastrou pelo resto do mundo?
Tomara que já tenham voltado pro Tabuí. Tomara!
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