21/08/2011

Nós Sofre Mas Nós Goza


          A jardineira que carregava o povo de Tabuí era desengonçada. E põe desengonçada nisso. Mas o dono da dita cuja, o Vivaldino, homem caprichoso e cheio das invenções, sempre tava arrumando uma melhoria na sua máquina de ganhar a vida. Arruma daqui, arruma dali, a coisa foi melhorando. O máximo mesmo foi quando ele inventou de colocar uma porta na traseira da dita cuja e uma catraca com o cobrador no meio do corredor. Povo de Tabuí ficou tão orgulhoso da sua empresa de transporte que nunca mais a jardineira viajou de banco vazio. Todo mundo queria experimentar a novidade que, segundo se dizia, sem tirar nem pôr, era igual aos coletivos de Bel'Zonte. E Vivaldino, vivo pra danar, ganhando dinheiro. Carregava gente, galinha, porco, bode, pato, ovos, saco de carne, abóbora, tudo, em troca de uns trocados.
          Foi aí que um dia entrou o velho Honorato com sua cara metade, a Honorina e mais umas muquiças na jardineira. Indo pra Tabuí. Ajeitaram-se como puderam. Jardineira quase desmontava nas subidas e descidas. Ar parado. Sol do meio-dia. Calor de matar. Fedentina braba. Poeira sufocante deixando todo mundo meio bazé. Honorina, de pandu cheio, vendo aquilo tudo, sentindo aqueles cheiros, vendo as árvores passando de carreirinha, ouvindo a conversa mole do Tõe Carapina, com bafo de cachaça misturado com cheiro da gasolina, começou a sentir tonteira. Honório não teve conversa e soltou o verbo:
          - Pára! Pára! Pára aí, Vardino!
          Vivaldino, cheio de paciência, pára a condução, olha pra trás e pergunta:
          - O quê que foi home de Deus?
          - É a muié qui tá cum pobrema, sô! Nóis vai descê um tiquim! Péra aí!
          Desceram. Honorina respirou um ar mais puro, sem poeira e fedentina, e melhorou.
          Toca a jardineira. Tõe Carapina, com a garrafa da Providência no bolso trazeiro, de vez em quando dava uma bicada para molhar a palavra. Soltava o verbo e ficava cada vez mais bêbado e chato contando potocas e piadas sem graça e até inconvenientes. Ninguém mais tava agüentando sua conversa mole na parte traseira da jardineira, de pé e trocando as pernas.
          Aí é que entrou a madama. Gente fina, com jeito de cidadã. Todo mundo viu. Sapatos de salto alto. Batom vermelhinho nos lábios. Bolsa das mais chiques no ombro. Vestido verde, longo e decotado. E um perfume!... ôta perfume! Daqueles que atraem qualquer nariz.
          Madame, toda dengosa, com passo de veada e nariz arrebitado, não olha pra ninguém. E tava injuriada sentindo a capiauzada silenciosa de olhos pregados nela. Tõe Carapina, o bebum, de butuca, ficou de boca aberta e foi seguindo a recém-chegada pelo corredor da jardineira. Acontece que a madame, ao fazer força para passar na catraca, se descuidou um pouquinho e deixou escapar um sonoro pum.
          Todo mundo volta a olhar para a distinta, agora, com cara de surpresa e reprovação. Mas nem precisava. Ela já não tinha onde botar a cara. Vermelha como um pimentão maduro. Pum todo mundo solta mas, assim, vindo de uma madame, ele tinha uma cor muito especial. Ela passa pela roleta, passa pelo Honório mais a Honorina e vai lá pra frente, sem nem olhar de lado, tonta de vergonha.
          Mas voltemos ao Tõe Carapina. Passa também pela roleta e vem vindo meio cambaleante. Cai aqui, cai acolá... Senta no colo dum negão que lhe dá um chega pra lá. Aí vem pra bem junto da madame e, todo serioso, dá mais uma bicada na Providência e, meio consolativo, fala bem alto, pra todo mundo ouvir:
          - Dona madama! Fica com vergonha não, tá? Hic!... óia, todo mundo peida, sá! Óia, motorista peida, cobradô peida, hic!... eu peido, aquela véia peida... hic!... fica com vergonha não, tá?
          Madame não tinha onde colocar a cara. Honorina, quando viu ser citada como "aquela véia" que peida e os passageiros olhando para ela com cara de riso, não agüentou. Passou mal outra vez. Chamou o juca com todo o entusiasmo. Uma parte do vomitado lambuzou o vidro e a outra foi misturar-se à poeira da estrada. Honorina cutuca no Honorato e gunguna umas coisas tampando a boca com a mão. O velho outra vez põe a boca no mundo:
          - Pára! Pára! Pára aí, Vardino! A muié tá com pobrema de novo!
          - Que que foi dessa vez?
          - É que ela foi lançá e gumitô a dentadura!
          - Foi longe?
          - Não... Foi bem ali acolá lá atrais! Dá uma macharré pa trais, dá Vardino!
          Vivaldino engata uma marcha-ré na jardineira que volta sacolejando de má vontade uns cem metros.
          - Pára! Pára, Vardino! Foi aqui!
          Honorato desceu. Procurou a danada da dentadura tempão danado enquanto a Honorina, dentro da jardineira tampava, com a mão, a boca murcha. Depois de um bom tempo, volta o Honorato, triste e com cara de nervoso.
          - Uai, Honorato, num achô a dentadura não?
          - Uai, sô! Inté que achá ieu achei! Mas num é que a rodera passô in riba e ismigaiô ela?

Um comentário:

Unknown disse...

EURICO!

Cá entre nós essa foi de lascar. Amassar uma dentadura? Só faltava ter galinha nesse ônibus.

Ótimo!

Beijos

Mirze