10/08/2008

Novidade chega na Mutuca


Cê pensa que Tabuí é um fim de mundo? É não. É que ocê não conhece a Ingrizia. Lá, sim. É onde o vento encosta o cisco. Tem pra mais de vinte anos que dezenove pessoas moravam na Ingrizia e, embora o povinho de lá comece cedo a fazer nhanha, - já que a outra única diversão é pescar -, a cada um que nasce, dois ou três vão embora. A população de Ingrizia, hoje, resume-se a treze pessoas: o Lazo, a Fiíca, os sete filhos e mais quatro gatos pingados que não acharam pra onde ir.
Ingrizia fica lá pras cucuias, no entremeio da Serra do Urubu, prensada entre esta e o Rio Sorongo. Do lado que podia morar mais gente, sem tanto morro, é mata fechada, onde não andam jumento e nem bode. O caminho para chegar na Ingrizia é uma tortuosa trilha, de mais de quatro léguas, subindo e descendo morro, cortando brejos e tafuiando pelas matas. O povo de lá é tão acostumado a viver só que, quando chega gente de fora, fica assustado e se esconde. O visitante corre o risco de chegar naquelas bandas, - isso se não errar a trilha -, e não achar ninguém.
O Lazo, com sua turma, passava anos se ir à cidade. Dos filhos, só os dois mais velhos, Guinel e Laíde, conheciam Tabuí. Semana Santa. Lá vão eles, com roupinha de ver Deus, em fila indiana, trilha a fora, ainda de madrugada, para participarem da procissão do Senhor Morto, organizada pelo padre Anacleto, pro comecinho da noite. Parada só num córrego ou noutro para beber água, molhar os pés e lavar o suor do rosto. Com cuidado para espantar as piranhas e as arraias e pondo sentido para evitar o ataque da sucuri traiçoeira. Se algum filho parava para catar araçá, gabiroba, coquinho, ovo de passarinho ou algum galho de peidorreira, depois tinha que correr atrás e, segundo ordem do pai, ficar no final da fila.
- O úrtimo da fila é quem a onça sorratera pega premero, viu?
Por medo, ninguém queria ficar pra isca de onça e só paravam mesmo quando a fome apertava demais da conta ou quando o de comer era pra lá de apetitoso. Paravam também por outros três motivos: pras necessidades, - todo mundo de uma vez -, cada um atrás de uma moita; para comer a matula de frango com farinha de mandioca, na beira da Lagoa dos Valérios; ou para rezar, ao pé de cada cruz, um mistério do terço. Chegavam na cidade de terço garantido, uma vez que passavam por cruzes que assinalavam cinco mortes no caminho, uma de morte morrida, outra de morte matada e três por morte d’onça. Mas, naquele dia, assim que terminaram as quatro léguas da trilha e entraram na estrada esburacada de carro de boi, - com mais duas léguas chegariam a Tabuí -, logo no começo, uma cruz nova, de peroba. Rezaram mais um mistério do terço. Nem bem andaram trinta metros, outra cruz. Mais um mistério. Logo depois, outra. Todas de peroba. Outro mistério. E não parava de aparecer cruz... cruzcredo! Enfileiradas. A cada trinta metros, mais uma. Aí o Guinel protestou.
- Pai, já rezemo quatro terço e num pára de aparecê cruiz... assim nóis vai chegá pra procissão só amanhã!...
Lazo resolve olhar melhor as últimas cruzes e as achou estranhas. Bem diferentes das antigas, pois que tinham o pé comprido demais, desproporcional aos braços e à cabeça, muito curtos.
- Gente, vamo pulá uma cruiz ô outra! O Guinel tá certo. Num vamo rezá em todas não... que me descurpe cada falecido...
Foi aí que apareceu outro ingrediente na história. Amarrados nos braços de cada cruz, a partir do Capão dos Óculos, - coisa esquisita -, dois fios de arame ligando uma à outra. Aquilo foi muito curioso, novidade de primeira, foi bão demais da conta pra meninada e apressou a caminhada de todos, pois, quando chegavam numa cruz e viam que tava amarrada com o arame, corriam pra seguinte e pra seguinte a fim de terem certeza de que o arame continuava.
- Ôta arame cumprido, pai!...
Então o Lazo entendeu tudo.
- Muié! Fios! Vamos cortá a rezação! Isso daí num é cruiz! É a tal de luiz eletri qui vi dizê qui tá chegano lá na Mutuca. Essas cruiz pareceno girafa deve sê pra sigurá esses arame que vai acendê a luiz da Mutuca... bãobora digero quisinão a gente num bamo vê nem chero de procissão!...

4 comentários:

Jalul disse...

Você me lembrou uma coisinha que jamais escreverei sobre.
Nos antigamente, tipo 45 anos pra trás, andava nas comitivas dos padres, médicos e guardas da antiga SUCAM. Chegávamos em lugares e aldeias indígenas mais distantes do que Ingrizia. Acredite home, tinha que pegar nego na marra para fazer uma aplicação de vacina contra a febre amarela que, à época, era na base do riscadinho com uma lâmina de vidro e não com pistola, como hoje.
Pense numa dificuldade! Pensou? Multiplique por dez.
Tinham uns caboclos que se enterravam nos buracos de armadilhas de pegar onça. Nem por milagre era possível arrancar o danado lá de dentro do fosso.
Disse que jamais escreveria sobre isso por uma simples razão: pensando bem, aquilo era uma verdadeira agressão aos usos e costumes dos povos indígenas. Me envergonho.

Dalinha Catunda disse...

Muito interessante esse seu "causo". Parece coisa do passado, mas, hoje mais do que nunca, pricipalmente no interior, A cruz na estrada se faz presente.E por trás de cada cruz uma triste história. Ainda bem que nessa história a cruz gigante não passava de poste.
Um abraço,
Dalinha Catunda

Unknown disse...

Leila, essa sua experiência dá pra virar um bom causo. Pq vc não tenta?

Unknown disse...

Dalinha,
Ah, Dalinha! Tanta cruz tem lá pelo interior. Cada qual conta uma história de morte, não é mesmo? E o povo passa desconfiado, rezando pela alma daquele que se foi...