Parte 5 – por JPVeiga mailto:jpveiga@marlin.com.br (de novo!)
Atrás do balcão, meio corpo sobre cotovelos calejados disso, Seu Josué contava as horas tamborilando, na altura da boca, dedos provocativos do bocejo que nunca lhe saía. Vez ou outra movia os olhos à frente, na direção dos copos sujos sobre o balcão; ou ao lado, para o prato com as rodelinhas de chouriço, cada qual se acasalando com meio ovo cozido, lado gordo à mostra. "Lispectoriano", para ele, bem poderia ser o nome do xarope infantil que a catarrenta da Euriquinha tomava, mas assim mesmo ficava a imaginar coisas do ovo: "Tome arma nas anca, seus ovo encapetado sem-vergonha..."
- falando do palito de dente que neles espetava - "Ocêis fica tudo aí de abusá na esfregação c'as mulatinha, né? Pois agora ocêis casa na marra, seus vadio, que aqui o delegado é eu! Bem se vê que ocêis é tudo fio daquela mãe d'ocêis, cheia das falação, seus safado!".
As moscas, "ad hoc", testemunhavam o matrimônio e logo voavam para a festa, ali nos copos babados de "Providência" e onde ardejavam na bebedeira até a morte... "Êta cachaça cangacera braba! Esse timbó aí ceva e mata... sô...". Arrepiava-se: "Sinar é do padre e do fio e... (rezando contra o patrimônio?!) ...mais quem qui num vai é morrê um dia, uai! E, domais, bem feito pra quem faiz é desfeita dos meu coqueter pra mode ficá é só de babá na cana!".
Nesse momento, lá da calçada veio um ruído "tec-tec-tec-tec-tec" há muito conhecido. Era o Cego Dió, já aparecendo na janela do botequim e a declamar em alto som os seus poemas; um novo profeta, que tateava com a sua bengala na procura do melhor chão para semear a mensagem dos seus sonetos, e bem "vendo" que seria por ali mesmo a plantação e a colheita... Mas, desta vez, o "tec-tec" do cego se acompanhava de um outro, desconhecido, mais baixinho, mais fininho, quase um "tic-tic-tic-tic-tic", de formiguinha.
O Cego Dió passou; o motivo do "tic-tic" veio atrás dele. Cinco ou seis palmos de um motivo suficiente; cabelos pretos e um nome: Euriquinha. A menina magricela, catarrenta, seguia tropeçando atrás do Cego Dió, a bater no chão com uma varinha de taquara; imitava-o, resmungando palavras desconexas, com jeitinho de quem fica de cara para o sol, de olhinhos espremidos e um sorriso enormemente arteiro.
Seu Josué, tratando de esconder os copos sujos, ralhou:
- Ô minina capeta! Largue de arremedar o cego que Deus castiga! E se num castigá eu conto pra Dona Sterzinha e ocê vai é vê istrela na lambança de côro qui vai cumê nessa tua carne seca, danada!
Os olhos arregalados de Euriquinha, sorriso sumido, faziam a apelação por uma pena alternativa...
- Oi'qui, minina, eu num falo é nada não pra sua mãe não... mais ocê vai é inté na casa de Dona Cris e pega os quitute que eu incumendei pros fregueiz di mais tarde.
Acordo fechado! Mas como era de se esperar...
- Pode ir cum Pedrim? Ele tá é lá fora! Pode? Dexa, vai? Nóis dois vai é di dois. Vortamu é mió! Pode? Pode? Pode? E quem é qui vem qui o sinhô num qué nem servi essa lingüiça véia di porco preto qui tem zóio marelo? Quem é? Quem é?
- Num é lingüiça di porco preto, viu! Vai é logo, ô distrambeiada!
A menina escondeu a varinha de taquara ali no balcão e correu para o outro lado da rua, faiscando olhinhos diabólicos nos cochichos com o irmão, ambos sumindo na direção da casa da Dona Cris.
Bem, depois do fiasco do Prefeito Waldir do Vau, no seu comício, diziam que a cena do Manezinho sem calças fora armada pelo Coronel Hélio Freire, que culpava o prefeito por desrespeitar a memória de seu pai. Padre Anacleto já achava que a briga iria mesmo acabar demandando seus bons ofícios, no cemitério; também não queria ficar "indisposto" com nenhum dos lados. Assim, propôs mediação eclesiástica e tratou de organizar um encontro. O problema: nenhum dos dois era lá muito de rezas; pensavam "melhor" invocando outro tipo de "Providência" e assim o botequim fora escolhido como campo neutro. Padre Anacleto, às turras, consultou o bispo e foi "recomendado" a aceitar... Além do prefeito, do Coronel Hélio Freire e do Padre Anacleto, ainda viriam: Doutor Rodrigus, um médico para eventualidades; Coronel Antonio Mariano, amigo comum das partes, e Seu Zé Bráz, o suposto intermediário na trama. Por fim, contava-se ainda o povo curioso e a presença indispensável do fotógrafo Seu Barrox, para eternizar o momento, mesmo que fosse com a tralha velha do equipamento sobressalente; serviria até que o "novo" fosse consertado.
Eram esses os fregueses, gente importante, e a quem não se poderia, a casa honrada, oferecer simplesmente aquele "famoso" chouriço com ovo.
- Vixe Dona Cris! Pra mode di qui é essa muntuera di sargadim? Vai é acuntecê festa lá na casa daquelas muié cheia das rôpa bunita, vai é? Ói só Pedrim!
Dona Cris, gaúcha além dos pampas, desde cedo já estava a amassar batatas, a refogar, a enrolar, a empanar, a fritar, a assar... e a reclamar, resmungou:
- Bá, guria! É para a reunião hoje, lá naquele "galpão" do copo sujo. Farrapos mortos de fome! Nem o mate já me carrega este cheiro que me enoja... barbaridade...
- Hahaha! - sorriu Euriquinha - Ocê fala é isquisito, Dona Cris. Seu Josué mandô é qui é pra nois dois carregá os sargadim inté lá... Inda bem qui nóis veio é di dois... Num é Pedrim? - arrematou a menina, despertando o irmão com uma cotovelada.
E um par de crianças, unido pelas alças de uma grande sacola, pôs-se a caminhar na direção do rio.
- Óia, Euriquinha, eu num tô é achando isso lá muito é bão não... - disse Pedrim.
Euriquinha, testa suada e já apelando para as duas mãos na alça da sacola, não deixou por menos:
- Ocê é um cagão medroso qui mija é na cama! Seu Pedrim Bundim! Seu Josué falô: "...pros fregueiz di mais tarde..." e inda farta é umas hora. Já disse pra ocê qui nóis vai é só inté o rio pra mode fazê "recreio" co'esses sargadim. É muntuera danada di tanto sargado qui tem! Óia só! Inté cachorro vai é vumitá di tanto cumê os restoio. Nóis vai é lá, senta, come uns sargadim, óia o rio, os passarim... Dispois nóis vorta é bem ligero...
E foram. Sentaram-se na beira do rio, cansados; os sapatinhos lhes queimavam os pés; sem eles era melhor; comeram, jogaram pedras na água, voaram com os pasarinhos e, embalados por eles, dormiram; sonharam e continuaram a dormir...
- Pedrim!!! Acorde!! Ô muleque qui dorme mais qui gato véio!! Tá iscuro...
Pedrim acordou ensaiando um choro:
- A curpa é di ocê, sua magricela catarrenta! Agora nós vai é apanhá da mãe...
- Cala a boca, mijão! Nóis vai é cortá caminho no roçado inté distráis da igreja. Cata aí a arça da sacola e si vamu!
Voltaram, mas na pressa se esqueceram dos sapatinhos...
Seu Josué, de tão nervoso, já empastelava a gravata de missa com o excesso da glostora que lhe descia dos cabelos, misturada com o suor desaguado na camisa. Casa cheia, garrafas de "Providência" se esvaziando e nada dos salgadinhos. A freguesia reclamava do "chefe" do serviço no botequim, que já ganhava chifres e cheiro de bode, o expiatório das culpas de uma briga política; os até então inimigos estavam próximos de se irmanarem em causa comum...
Dona Cris, muito zeloza, cuia de chimarrão numa das mãos e garrafa térmica na outra, entrou no botequim para controlar a qualidade do produto fornecido e receber a conta... Seu Josué nem lhe deu tempo para abrir a boca e foi gritando:
- Donde qui tá é os meu quitute, muié?!
- Bá... mas de que é que tu falas, bugre? Já faz horas que entreguei aos gurís! Eles não chegaram? Barbaridade...
- Aqueles raio de minina endiabrada e do canhoto do Pedrim se escafedero é cum eles!! - concluiu Seu Josué.
Silêncio geral; dezenas olhos e ouvidos nas explicações trocadas. Mas foi Seu Zé Braz quem cuidou de "temperar" o clima:
- Eu vi eles... os dois táva é di arrastá uma sacola nas mão... indo é lá pras banda do rio... já faiz tempão...
Rio!! - todos ao mesmo tempo. Lá tem é jibóia qui ingole inté boi!! - falou um. Naqueles capão di mato tem é urutu cruzero! - disse outro. Vige Santa!!... arrematou um terceiro. Vamu avisá Dona Sterzinha e saí pra mode precurá os dois!! - enfim.
A porta era pequena, mas deu vasão àquele bolo de gente que corria em apressada procissão noturna, na direção do rio. Mãe chorando, padre confortando, beata rezando, coronéis no comando, peãozada na frente, o povo embolado atrás...
As ruas ficaram vazias.
E na beira do rio só acharam alguns sapatinhos largados; um aqui, outro ali... misturados no capim amassado...
Mãe desmaiada, padre chorando, beata ajoelhada, coronéis derrotados, peãozada cabisbaixa; agora, o povo era só um bolo abatumado, que voltava pelo mesmo caminho; subida de um calvário gemido, lerdamente...
A metade feminina foi para a igreja, a metade masculina para o botequim; cada qual fazendo o papel exigido pelas circunstâncias... Menos Dona Sterzinha, que resolveu antes amaldiçoar a sua desgraça, de boca cheia, com cachaça, e bem amaldiçoada.
- Arre, Pedrim! Chegamo. Donde é qui tá tudo mundo? Ô Seu Josué! Cadê o sinhô?
- Deve di tê ido é tudo lá na igreja, Euriquinha...
- Num foro é não. Nóis num vimu eles no caminho e a caxa di tirá "frotrogafia" do Seu Barrox tá é ali co'as perna isticada. Óia, vamo é arrumá esses sargadim nos prato pra mode Seu Josué num ficá é brabo c'a gente...
E ocê trata é di lavá os copo sujo di cana...
*
- Óia ocêis aí! - foi a exclamação de Euriquinha quando o povo entrou no botequim - Nós chegamo c'os sargadim e num vimu é nem sombração docêis! Donde é qui ocêis si metero, hein? - foi a pergunta que terminou a frase, misturada com um já conhecido sorriso na boca da menina a abraçar o irmão de avental, maior que ela, mas como fosse ele o menor.
O "onde", o "quem", e o "nóis o quê?!", pensado na resposta coletiva, não foi dito. Abraços da mãe, mais choro, risadas molhadas e beijos nos filhos; olhares de toda espécie, principalmente daquela espécie desfavorável ao feliz encontro, sob o ponto de vista das crianças...
Dona Sterzinha parou um olhar que lançava aos céus em agradecimento, no meio do caminho, pois vira no percurso, no canto do balcão, aquela varinha de taquara deixada pela menina horas antes...
O abraço virou agarro; sumiram os lábios que beijavam e apareceram dentes que se mordiam; a mão do afago transformou-se na carrasca a empunhar o açoite. Mas antes da execução, disse Euriquinha, já mal engolindo o choro e o catarro do nariz:
- Num bate não, mãe! Co'essa varinha não! A varinha é pra mode aprendê "inxergá" qui nem o Cego Dió. Se a mãe batê cum ela ni nóis, o choro vai é ficá grudado nela e dispois num vai é dá pra "prantá" e nem "coiê" uns verso bunito. Vai é sê só secura... di tristeza mãe... Bate co'as sandáia...
A mãe não bateu; nenhuma o faria. Dona Sterzinha chorava como se houvesse levado a maior surra da sua vida; surra na alma pela só possibilidade de ter perdido aquela menina. Pedrim veio procurando achego, junto da mãe e da irmã; os três já se embolavam por ali mesmo, particularmente em afagos recíprocos no meio do povo que já se punha a dar vivas a todos os santos que conheciam.
A festa atravessou a noite. Preto, branco, mestiço, criança, cachorro, todos se embolando ao som da sanfona, da zabumba, do pandeiro e da viola. Situação, Oposição e povo confraternizados na felicidade, na "Providência" e nos salgadinhos. Até o Padre Anacleto, com o bucho repleto de guloseimas, também "benzeu o santo", generosamente, aproveitando para também abençoar o sono de todos que ja caíam embriagados pelos cantos.
Casa cheia, dança, cantoria, embolação, final feliz.
E esse foi mais um retrato do Seu Barrox. Mais um, entre tantos, que ficaria pendurado para sempre na parede daquele botequim.