Aí o Manezinho,
depois de perder as três mulheres, dar fiasco na lama, ficar sem a dentadura,
chorar feito menino de cueiro, afinar a voz e perder a inspiração pras
emboladas, não agüentava mais.
- É muitumiação prum fio de Deus, sô!
O
moço resolveu mudar de vida. Primeiro mudou de cidade. Foi pra Tabuí. Em
chegando lá, arranjou serviço de sapateiro, começou a tomar da Providência e a
freqüentar as missas do Padre Anacleto. Virou homem de muita fé. Pegou amizade
com o casal mais santo da cidade, a dona Ivani mais o sô Getúlio e, os três, só
falavam de Bíblia. Vez em quando, pra refrescar, Ivani arrumava uns assuntos de
umas tais de resenhas e o Getúlio arrancava música caipira chorosa de uma sanfona
velha apaixonada. Manezinho até começou a sonhar em montar dupla com Getúlio.
- Num sesse minha voz fina!...
Chegou a semana santa. Tabuí era toda
respeito. Ninguém cantava, ninguém ria, ninguém assobiava, homem não mexia com
mulher e a recíproca, dizem, era verdadeira. Providência ninguém bebia.
O Manezinho, na sexta-feira santa, convidado
de última hora, influenciado
pela conselheira dona Ivani, resolve participar da encenação da paixão que o
padre Anacleto organizava todo ano na subida do Morro do Tiraprosa. O grande
papel do Manezinho era ser soldado romano carregando um chicote.
Três da tarde, sol de rachar, ia o povo de
Tabuí ladeira acima em procissão. Todo mundo lá. Até dona Eunice veio de longe
com uma penca de filhos. Coroné Hélio, com os olhos fundos de mal dormidos,
tinha saído da toca de recém-casado com a menina Patrícia. Professora Sterzinha
segurava numa mão o gêmeo catarrento Pedrim e, na outra, o gêmeo Alvim, com um
galo na testa. Os dois, de camisa vermelha e calças curtas listradas de verde e
amarelo. Suspensórios azuis. A Eriquinha, com vestido de chita e precata roda,
garrada na saia da mãe, ia atrás, limpando com as costas da mão o nariz, que
teimava em escorrer, e chutando o calcanhar do Pedrim que só não caía porque
grudunhava na mão da mãe. O Dió era o comandante da turma paramentada da
Conferência Vicentina. Seu Josafá, dono do Bar Beirão, mais conhecido como Copo
Sujo, seguia a procissão trocando, de vez em quando, umas idéias com o prefeito
Waldir. Dona Sandra, a endinheirada dona da escola Ateneu, lá do Tapiraí, fez-se
presente com um bando de molecas e moleques uniformizados, todos do jardim de
infância. Coisa fina mesmo. O fazendeiro Zé Mariano resolveu sair da fila com o
nhô Felipe de Paula enquanto tentava fechar um negócio de compra, venda ou
troca de garrotes por cachaços. Seu Manoel tava brigando com dona Judite porque
esta, distraída, olhando o movimento, trombara nas costas dele, num momento em
que a procissão dera uma parada. -"Pois, pois, ó mnina! Não olha por onde
anda, opá!". O estudante, futuro médico Chiquinho ia, todo de branco,
olhando pro céu e sonhando com o hospital que um dia iria montar em Tabuí. Seu Brioso,
cansado de ser lambe-lambe, não perdia, todo orgulhoso, um ângulo bom para, com
a sua triplex, fazer a história da cidade. A Lu, chefe da Legião de Maria,
puxava as cantigas com a voz mais afinada que surgira por aquelas bandas. O Dalton
era o encarregado da matraca. Subia e descia o morro, - enquanto a procissão só
subia -, arrancando até um chorinho da matraca sagrada. O André, dono do Açougue
Vaca Profana, ia remoendo o pensamento, caçando uma maneira de inventar uma lei
para extinguir com a Semana Santa, que acabava com o seu lucrinho, já minguado.
Pois bem. O Manezinho sentou praça na procissão
como soldado romano. Junto com ele mais uma reca de soldados, uns apóstolos,
umas mulheres, o padre Anacleto e o Jesus Cristo. Era a turma da frente da
procissão. Subindo o morro. Suando bicas. O Cristo, um morenão forte, tava
quase entregando os pontos, tamanho o peso da cruz. Mesmo assim, ia em frente,
puxando o povaréu e xingando o carpinteiro.
- Carpinteiro viado! Bem que podia ter
feito uma cruz de pendão de piteira, mas não. Faz logo de cerne de aroeira!... Disgramado!
O Manezinho, depois de - mesmo proibido
- tomar umas talagadas da Providência pra criar coragem, tá lá atrás do Cristo
com o seu chicote. Aí resolve puxar conversa.
- Anda mais depressinha aí, ô Jesuis!
Jesus, suando de monte, fedendo inhaca
e puto da vida, olha pra trás pra ver de onde vem o atrevimento e quase
desmancha o pobre do Manezinho com o olhar. Aí é que aconteceu o
reconhecimento. Manezinho descobre que Jesus Cristo é o Rajão, o safado do
homem que lhe tomara a primeira e única namorada que tivera na vida. Andou
matutando um pouquinho e decidiu, falando com seus botões:
- É hoje, gente! Esse Cristo me
paga!...
Aproximou-se mais do Rajão e, de leve,
assim como que para experimentar a reação, dá-lhe uma chicotada. Rajão
estranhou, mas aceitou resignadamente aquilo, sem entender bem de onde vinha.
Outra chicotada. Mais forte. Rajão olhou por baixo da cruz, para trás,
procurando padre Anacleto para achar uma explicação. O vigário tinha colocado
um lenço pra tampar a careca e seguia contrito rezando seu rosário e nem viu o
desespero do Jesus Cristo. Mal Rajão vira pra frente, vem outra chicotada.
Ardida. Aí é que ele viu e reparou no franzino do Manezinho. Olha pra ele
pedindo clemência. “É muitumiação prum fi de Deus, sô!”... A procissão
continua. Quase todo mundo em silêncio, absorto em seus pensamentos e orações,
alguns rezando contritamente. E, lá na frente, o chicote comeu mais uma vez.
- Pára com isso, ô mardito nanico dos
infernos!
Quase ninguém ouviu, a não ser o
próprio Manezinho, um ou outro soldado, e o Carlão, que fazia o papel do
apóstolo Pedro. Rajão cuspia fogo pelos olhos e bafo pelas ventas. Manezinho
deu um sorriso amarelo, um tempinho, e lasca sem dó outra chicotada que estalou
na poupança quase nua do JC.
A dona Cristina, cozinheira das mais
afamadas, dona do restaurante "Garrote Moído", que virou Madalena,
estranhou aquela cena fora dos conformes. A Cremilda, que fazia o papel de
Maria, a mãe do Homem, também estranhou a afronta ao filho. O Fábio Gomes, o
apóstolo João, ficou com um pé atrás ao ver a cena.
Foi aí que desandou tudo. O Rajão, no
desespero, jogou a cruz prum canto e pulou pra cima do Manezinho. Este, vendo
que correr pra baixo era melhor que correr pra cima, desembesta ladeira abaixo,
com o Cristo nos calcanhares. Dona Cristina, adivinhando que era briga, corre
atrás dos dois para apartar a desavença, seguida logo atrás por Maria toda
desconsolada. Os apóstolos Pedro e João, entendendo tudo, vendo que o negócio
ia ficar feio, levantam as saias e correm também para não deixarem ninguém
matar ninguém em plena sexta-feira santa. Padre Anacleto, quando descobre que
alguma coisa não ia bem, vendo a frente sem o Cristo, levanta a batina até a
cintura e se manda atrás dos seis, querendo esclarecimento. Os outros atores,
que nem ensaio tiveram, pensando que aquilo era parte da encenação mandam-se também,
ladeira abaixo, tropeçando uns nos outros. E o povo, ah, o povo! Assim que os
primeiros da procissão dão com aquela correria, vêem o padre Anacleto correndo
atrás de Jesus Cristo, começam a se perguntar - o que que se sucede?. E, sem
entender nada, tratam de fazer meia volta e desabam também a correr ladeira
abaixo. Dona Sterzinha, dona Eunice e a diretora Sandra perderam meninos no
meio daquela embolada toda. Uniforme branco de meninos do Ateneu perdeu a cor. Prefeito
Waldir gritava "calma, gente!" mas, por via das dúvidas, sem entender
o motivo da correria, resolve ligar o motorzinho das canelas ladeira abaixo. Felipe
de Paula perdeu-se do Zé Mariano quando tratavam dos finalmentes para trocar
umas galinhas magrelas por 10 jacás de milho. Coroné Hélio, no meio da poeirada
toda, ficou rodando, meio tonto, e gritando "benhê! Cadê ocê!". Seu Manoel
só aí é que parou a discussão com dona Judite, porque um se perdeu do outro,
cada qual caçando refúgio para se esconder do perigo iminente. O retratista Brioso
foi o único que não correu. Ficou no meio daquela gentalha em fuga, triste,
olhando pra sua triplex despedaçada no chão. Foi assim que a procissão se
inverteu. No lugar de chegar lá em cima do Tiraprosa, foi parar no barraco do Manezinho.
Padre Anacleto chegou a tempo de livrá-lo das garras do Rajão que, com uma mão
só, segurava-o pelo pescoço, sojigando-o contra a parede, enquanto seus
pezinhos balançavam a meio metro do chão.
(A história
completa, chamada “Embolada das Letras”, escrita por três autores, em cinco
partes, você pode ler no link http://tabui.blogspot.com/search?updated-min=2006-01-01T00%3A00%3A00-02%3A00&updated-max=2007-01-01T00%3A00%3A00-02%3A00&max-results=5)
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