17/04/2014

A PAIXÃO DE CRISTO

   Lá em Tabuí se não houver encenação na Semana Santa, tem briga. É tradição. Tem que ter a encenação pro povo ver, chorar e se arrepender dos pecados. Os fiéis chegam de tudo quanto é canto para prestar sua homenagem ao Filho de Deus, colocar suas orações em dia e contar alguns pecados pro padre Anacleto, quando possível. Naquele ano o vigário resolveu convidar para fazer o papel de Cristo o Pedro Bode, conhecido de todos não pela fé, mas pelo gosto à Providência, a pinguinha da terra.
Pedro foi confabular com o amigo Manuel:
   - Óia, Manel! O padre achô ieu com cara de santo, viu?
   -É não, Pedro! É quiocê tem memo a cara de Cristo, cuessa barbicha e esse oio de peixe morto... Aí a encenação fica mais verdadeira, né?
   Este, o papo dos dois amigos de golo no boteco conhecido como Copo Sujo, do Vadico.      Ensaio que é bom, o Pedro Bode perdeu todos. Mas padre Anacleto não desistia nunca do artista convidado e de uma possível alma arrependida. Queria porque queria o Pedro e ponto final.
   - Manel, vamo faze o seguinte: eu vô, mas ocê tem que í tamém.
   - Í ondé, sô?
   - Ieu vô sê Cristo, se ocê arranjá um papel tamém, uai!
   Mesmo golados, conseguiram arrumar com o padre Anacleto que o Manuel fosse um dos soldados que acompanhariam o Filho de Deus na subida ao Monte das Oliveiras. Manuel tentou escapulir de tudo quanto é jeito, mas não deu. Teve que apoiar o amigo. Às quinze horas da sexta-feira santa, tá o povão se acotovelando na Praça da Matriz, onde providenciaram um “Monte das Oliveiras”. Os dois amigos, morrendo de vergonha, totalmente sóbrios - já que os botecos estavam fechados - não conseguem entender como entraram naquela encalacrada. Silêncio total na praça. Pedro Bode já está crucificado e o soldado Manuel ao pé da cruz, suando frio e com dó do companheiro, com vontade de pedir-lhe perdão até pelos maus pensamentos. Foi aí que Manuel lembrou que, por dentro da cueca, tinha uma garrafinha de pinga para dar coragem. Deu um jeito de, sem que ninguém visse, escondendo atrás de um ou de outro, tomar um gole da cangebrina. Mas e o Pedro, - pensou ele -, cumé que faço para dar uma força prele? Foi nessa hora – de acordo com o “script” - que Jesus Cristo, aliás, Pedro Bode, pediu água:
   - Tenho sede!
   O soldado Manuel não esperou segundo pedido. Pegou a esponja onde devia colocar água para representar o fel e despejou nela tudo o que restava na garrafinha e, com a lança, forçou-a contra a boca do Cristo. As beatas choravam, crianças arregalavam os olhos, pecadores se prostravam, etc. e tals, e o povão revoltado com a maldade do soldado, tamanha a realidade da encenação. Qual não foi a surpresa de todos quando toda a cidade ouviu pelo serviço de alto falante o Jesus, que parecia quase desfalecido, em alto brado:
   - Manel, ô Manel! Mais fel, Manel!!!...

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