17/05/2006

A embolada das Letras


Parte 1 – por
jpveiga@uol.com.br

A embolada

Moleque recém saído dos cueiros, um dia, Manézinho engrossou a voz.
E que voz ele arrumou!
Em pequeno sua mãe o carregava pra cá e pra lá, nas festas, batizados e afins, pra garantir um trocadinho. A voz de anjo embalava belas cantigas, fazia o povo sonhar, encantando as festas do lugar.
Mas foi só a voz engrossar que Manézinho caiu no mundo e foi buscar seu lugar no sol. E tome chuva. E tome voz grossa.

A cidade era perto de Tabuí, onde o cumpadre Orico morava, seus causos, conhecidos em todas as vizinhanças, foram convidados pro casório. Manézinho chegou, bateu as palmas no portão e foi logo contando as novidades pro padrinho:
Também tinha sido chamado pro casamento do Coroné Helio Freire com a belezura de minina Dona Patrícia - ia ter distribuição de bacias, belas e brilhantes, comemorando a união. O cego Diógenes (Dió pros íntimos) ia declamar seus sonetos na beira da fogueira e seria a melhor ocasião pra Manézinho inaugurar sua nova fase de cantoria: a embolada.
Foi a noitinha chegar e uma fila parecendo uma cobra, se desenroscava pras bandas da fazenda. Lá pro final da fila vinha a bela professora Dona Sterzinha, puxando seus filhos gêmeos Pedrim e Alvim e sua filha Eurica, que não parava de falar. Ô mininada encapetada! Manézinho tocou a conversar com a professora e explicou que agora não cantava mais as musiquinhas de igreja, agora era um versejador de emboladas e iria fazer sua estréia na festança.
O terreiro todo enfeitado mostrava como a coisa ia ser grande, fogueira, espetos de grande churrasco e o cego Dió (que enxergava mais que metade do povo) puxando seus versos; ia começando a grande reunião.
Manézinho, empurrado pelo colega de cantoria e versos nhô Filipi di Paula, subiu num banco e bem antes do casamento começar, tascou sua embolada:

Ôi, o peixe que eu pesquei lá numa pescaria
Botei no galinheiro ele se acostumou
E tão habituado que milho comia
Até junto do galo que não estranhou

Até pelo costume tinha liberdade
E muita vez na mão foi que se alimentou
Mas um dia que mal digo tive piedade
De ter tirado o peixe donde se criou

Levei-o para praia e fui botar no mar
Mas ele ao que parece disso não gostou
Pois tendo se esquecido de saber nadar
Coitadinho do peixe n'água se afogou!

Que sucesso! Que vozeirão! O povão aplaudia, Manézinho envergonhado gaguejava, a cozinheira Dona Cris gritava derramando seu eterno chimarrão, o dono do boteco da cidade, Seu Josué, falava que ia contratar o cantador pras noites de seu pé sujo. O noivo e a noiva ficaram pra trás, a coisa agora era ouvir o novo cantador com sua nova voz.
E que voz!

De manhãzinha, cinzas ainda quentes, lá no horizonte, deu pra reparar o tal de Manézinho saindo enrabichado com uma dona, todo feliz, arrastando sua nova conquista.

Foi só até a nova festa que o povo fez fofoca. De casa montada e tudo, Manézinho agora vivia carregando pra cima e pra baixo sua senhôra. Que se mais velha em idade, era mais nova nos folguedos do amor. Manézinho exibia umas olheiras de causar inveja.

A festa, aniversário da pequena Eurica, filha da professora Sterzinha, prometia ser das boas. Os gêmeos, diferentes de rosto e iguais no vestir, vinham de coletinho e goma no cabelo. Não durou muito, para o desespero do fotógrafo Seu Barrox, que tentava eternizar o momento. Logo, logo estavam todos sujos e fazendo a maior bagunça. Só pararam quando o Seu Zé Bráz, com um sotaque carregado de vinho, avisou que o cantador tinha chegado, e sozinho. Dona Judith, sempre prestativa, arrumou um caixote pra servir de palco e todos se calaram esperando a embolada e a voz de veludo.

Oi, eu conheci um homem que era distraído
Fazia dessa vida uma atrapalhação
Andava pelo mundo tão absorvido
Que a nada de interesse prestava atenção

E contam mesmo dele um caso engraçado
Que eu não duvido mesmo que seja invenção
Dizem que chegou em casa muito preocupado
Com um grande charuto que trazia na mão

Entrando no seu quarto todo prazenteiro
Fez naquele momento uma tal confusão
Que deitando o charuto no seu travesseiro
Jogou-se no cinzeiro só por distração!

Novo sucesso, palmas, discurso de Seu Antonio Mariano, Dona Ivani gargalhava, a sonhosa Lú revirava os oinhos, a embolada e a voz de locutor, foram novamente o ponto alto da festa. Festa essa que contada em causo e verso pelo S'Ôrico, iria se transformar no maior acontecimento dos últimos tempos - ô homi danado de mentiroso!
O cego Dió (que visão!) fez até um sonetinho engrandecendo o cantador:

Deus quando forma a humana criatura
põe na fornalha um tempo pra cozer
se sentir por alguns maior ternura
mais tempo na fornalha os vai reter

Mas a coisa não foi só assim, descobriram depois que o cantador e sua voz, tinham arrumado outra admiradora, e ele, tal qual da primeira vez, tinha saído agarradinho! Foi um Deus nos acuda! Até a Diretora do Ateneu, Dona Sandra Falcona, que de fofoqueira não tinha nada, falava no assunto! Corria à boca pequena que Manézinho chegou em casa arrastando a nova dona e foi logo dizendo pra outra com voz de rádio FM: ela fica também!
Que escândalo! Bigamia na cidade! Seu Franciscus se cansou de explicar o que significava a palavra - o pessoal ouvia, botava a mão na frente da boca e saía sem acreditar.
Duas!
Se com uma a coisa já era difícil, que dirá com duas! Bofé!
As olheiras do coitado causavam mais e mais inveja nos homens. O danado desfilava de braço dado com as duas, distribuindo sorrisos e dando uma palinha da sua bela voz.

Pois foi a fama que o tal cantador conquistou que fez com que a festa da cidade, que já já ia acontecer, fosse cada vez mais esperada. Contam que só lá de Tabúi vieram 3 caminhões! A cidade estava toda engalanada, o Prefeito Waldir do Vau, prometeu dar a chave da cidade; todinha pintada de dourado pela pequena Eurica, ao mais novo felómeno da região - Manézinho Rei da Voz, o embolador de corações!

No dia, chuva fininha no horizonte, palanque pintado de branco escorrido com microfone da rádio montado, o Seu Barrox ajeitava o tripé de sua caixa preta, preparando a fota do ano. O pessoal foi chegando, um e outro discurso falado e o povão já inquieto murmurava algo sobre o cantador.
Manézinho se chegou todo enfatiado e sozinho de novo. Um zumzum correu pela praça. Sozinho! Logo ele que tinha duas!
E tome embolada.
Apresentado (e precisava?) como o filho pródigo da região, Manézinho atacou:

Oi, lá vinha pelo rio uma pedra boiando
Em riba dessa pedra 3 navegador
Um deles era cego nada enxergando
Outro não tinha braço pois o trem cortou

Mas deles o sem vergonha era o terceiro
Pois estava nuzinho como Deus criou
E eis que adiante o cego num berreiro
Olhando para o fundo um tostão gritou

Então ouvindo aquilo o tal que era aleijado
Passando a mão no fundo o níquel apanhou
E o tal que estava nu tendo o tostão tomado
Mais do que ligeirinho no bolso guardou!

Novamente foi uma loucura, aplausos, a chave da cidade trocando de mãos, apupos, assovios, discursos e lá pro final, sem que ninguém percebesse, Manézinho saiu com outra.

Manhã seguinte, charrete na porta, Manézinho se mudava com suas, agora 3 mulheres, para uma fazenda lá pros cafundós. O sorriso das senhôras dava um toque melancólico.
Manézinho, em suas palavras: deixava a vida pública para entrar na privada! Iria viver de amor, plantar e colher filhos e filhas. Uma multidão de umas 20 pessoas se aglomerou ao redor dos retirantes.
Um coro se formou: Canta! Canta!
Manézinho, em pé na caçamba da charrete, como um político atendendo seus eleitores, soltou sua maviosa voz:

Oi, um homem que comprou um burro numa feira
E quando para casa ela ia levar
Foi que ele arreparou olhando a dianteira
Que fartava dois dentes no maquiçilarrrrrr

E o r foi prolongado e prolongado e foi sumindo e foi ficando fino e fino até que a velha vozinha de menino tomou seu lugar.

Voltou para fazer sua reclamação
Ao homem de quem acabou de comprar
E este respondeu cheio de conviquição
Depois de ter ouvido o comprador falarrrr

E a voz fininha foi ficando sumidinha, sumidinha.
Lá do alto da charrete, uma das mulheres, perguntou a hora e foi saindo devagarinho, carregando sua maleta de papelão.
As duas restantes se olharam, se mediram, lançaram um olhar de esguela pro cantador que se esgoelava tentando fazer sua voz voltar, deram-se as mãos e uma delas chicoteou o cavalinho.
A charrete andou e jogou lá do alto o Manézinho, que caiu de cara numa poça de lama. Uma das partes da dentadura voou longe, a roupa nova toda manchada parecia camuflagem de exército. Manézinho se levantou e começou a correr atrás das mulheres, e gritava e gritava e só saía um fiapinho de voz.
O povo sem entender o que ele falava corria atrás.
Um cachorro latia, o cego Dió sacudia a cabeça perguntando o que acontecia prele fazer um soneto, os gêmeos Pedrim e Alvim, jogavam pedras nas poças d'água molhando todo mundo e o coitado do Mané corria e caía e corria. Quando percebeu que não ia conseguir, Mané caiu. Sentado no chão meteu a cara entre as pernas e chorou.
O povo se chegou perto e em silêncio ficou.
Um minuto, dois, três, cinco.
Só se ouvia o choro descontrolado do Manézinho.
Foi quando uma das pessoas arriscou (disseram que foi o menino Alvim):

Seu Manézinho, será que dá pro sinhô cantá o restinho da embolada?

Ora que despautério, não estava então vendo a situação?
Mas que coisa!

Ora Seu Mané, squece essas sirigaitas, cantaí o restinho, farta tão pouco pro finar! Falou uma das mulheres da roda.

E parece que a coisa pegou, logo estavam todos ajudando o coitado e pedindo, implorando, exigindo o final, vamos, cante, cante mesmo com essa vozinha de bosta, cante!

Como que recobrando sua postura, Manézinho se ajeitou, limpou uns pigarros inexistentes, e sem cantar declamou.

Oi, e disse com toda força que a razão lhe dava
Ô meu caro senhor queira me descurpar
Quando vendi o burro não adivinhava
Que o senhor queria para assoviar

Fraquinha essa não? Falou alguém lá do meio do povão.
Ruinzinha mermo! Rspondeu outro.

E assim, reclamando foram saindo, deixando o pobre Mané, lá, em pé, todo sujo, sem suas mulheres, sem sua bagagem, sem sua voz.

Agora, que a história tá contada, aparece sempre alguém acrescentando algo, é a coisa do quem conta um ponto...
Pois bem, andam dizendo por aí, que o cego Dió viu o Manézinho lá pelas bandas da Cascatinha, vestido de coroinha e cantando um Te Deum fraquinho, com uma voz de menina moça chatinha e acabando sempre com um soluço de cortar o coração.


Parte 2 – por
eurico2005@gmail.com (Eurico de Andrade)

PROCISSÃO INVERTIDA

Aí o Manezinho, depois de perder as três mulheres, dar fiasco na lama, ficar sem a dentadura, chorar feito menino de cueiro, afinar a voz e perder a inspiração pras emboladas, não agüentava mais.

- É muitumiação prum fio de Deus, sô!

O moço resolveu mudar de vida. Primeiro mudou de cidade. Foi pra Tabuí. Em chegando lá, arranjou serviço de sapateiro, começou a tomar da Providência e a freqüentar as missas do Padre Anacleto. Virou homem de muita fé. Pegou amizade com o casal mais santo da cidade, a dona Ivani mais o sô Getúlio e, os três, só falavam de Bíblia. Vez em quando, pra refrescar, Ivani arrumava uns assuntos de umas tais de resenhas e o Getúlio arrancava música caipira chorosa de uma sanfona velha apaixonada. Manezinho até começou a sonhar em montar dupla com Getúlio.

- Num sesse minha voz fina!...

Chegou a semana santa. Tabuí era toda respeito. Ninguém cantava, ninguém ria, ninguém assobiava, homem não mexia com mulher e a recíproca, dizem, era verdadeira. Providência ninguém bebia.
O Manezinho, na sexta-feira santa, convidado de última hora, influenciado pela dona Ivani, resolve participar da encenação da paixão que o Pe. Anacleto organizava todo ano na subida do morro do tira-prosa. O grande papel dele era ser soldado romano carregando um chicote.
Três da tarde, sol de rachar, ia o povo de Tabuí ladeira acima em procissão. Todo mundo tava lá. Até dona Eunice veio das estranjas com uma penca de filhos. Coroné Hélio tinha saído da toca de recém-casado com a menina Patrícia. Professora Sterzinha segurava numa mão o gêmeo catarrento Pedrim e, na outra, o gêmeo Alvim, com um galo na testa. Os dois, de camisa vermelha e calças curtas listradas de verde e amarelo. Suspensórios azuis. A Eriquinha, que as más línguas teimam em chamar de Eurica, com vestido de chita e precata roda, garrada na saia da mãe, ia atrás, limpando com as costas da mão o nariz, que teimava em escorrer, e chutando o calcanhar do Pedrim que só não caía porque estava grudunhado na mão da mãe. O Dió comandava a turma paramentada da Conferência Vicentina. Seu Josué, dono do Bar Beirão, mais conhecido como Copo Sujo, seguia a procissão trocando, de vez em quando, umas idéias com o prefeito Waldomiro do Val. Dona Sandra Falcone, a endinheirada dona do Ateneu lá da cidade vizinha, se fez presente com um bando de molecas e moleques uniformizados, todos do jardim de infância. Coisa fina mesmo. O fazendeiro Antonio Mariano resolveu sair da fila com o nhô Felipe de Paula enquanto fechavam um negócio de compra, venda e troca de garrotes e cachaços. Seu Zé Braz tava brigando com dona Judith porque esta, distraída olhando o movimento, trombara com seu trazeiro num momento em que a procissão dera uma parada. -"Pois, pois, ó mnina! Não olha por onde andas, opá!". O médico Francisco ia, todo de branco, olhando pro céu e sonhando com o hospital que um dia iria montar em Tabuí. Seu Barrox, cansado de ser lambe-lambe, não perdia, todo orgulhoso, um ângulo bom para, com a sua triplex, fazer a história da cidade. A Lu, chefe da Legião de Maria, puxava as cantigas com a voz mais afinada que surgira por aquelas bandas. O Dalton era o encarregado da matraca. Subia e descia o morro, - enquanto a procissão só subia -, arrancando até um chorinho da matraca sagrada. O André do Mel, dono do Açougue Vaca Profana, ia remoendo o pensamento, caçando uma maneira de inventar uma lei para acabar com a Semana Santa, que acabava com o seu lucrinho, já minguado.
Pois bem. O Manezinho sentou praça na procissão como soldado romano. Junto com ele mais uma reca de soldados, uns apóstolos, umas mulheres, o Pe. Anacleto e o Jesus Cristo. Era a turma da frente da procissão. Subindo o morro. Suando bicas. O Cristo, um morenão forte, tava quase entregando os pontos, tamanho o peso da cruz. Mesmo assim, ia em frente, puxando o povaréu e xingando o carpinteiro.

- Carpinteiro viado! Bem que ele podia ter feito uma cruz de gameleira seca, mas não. Faz logo de cerne de arueira!... disgramado!

O Manezinho, depois de - mesmo proibido - tomar umas talagadas da Providência pra criar coragem, tá lá atrás do Cristo com o seu chicote. Aí resolve puxar conversa.

- Anda mais depressinha aí, ô Jesuis!

Jesus, suando de monte, fedendo inhaca e puto da vida, olha pra trás pra ver de onde vem o atrevimento e quase desmancha o pobre do Manezinho com o olhar. Aí é que deu-se o reconhecimento. Manezinho descobre que Jesus Cristo é o Rajão, o safado do homem que lhe tomara a primeira das três mulheres. Andou matutando um pouquinho e decidiu, falando com seus botões:

- É hoje, gente! Esse Cristo me paga!...

Aproximou-se mais do Rajão e, de leve, assim como que para experimentar a reação, dá-lhe uma chicotada. Rajão estranhou mas aceitou resignadamente aquilo, sem entender bem de onde vinha. Outra chicotada. Mais forte. Rajão olhou por baixo da cruz, para trás, procurando Pe. Anacleto para achar uma explicação. O vigário tinha colocado um lenço pra tampar a careca e seguia contrito rezando seu rosário e nem viu o desespero do Jesus Cristo. Mal Rajão vira pra frente, vem outra chicotada. Ardida. Aí é que ele viu e reparou no franzino do Manezinho. Olha pra ele pedindo clemência. A procissão continua. Quase todo mundo em silêncio, absorto em seus pensamentos e orações, alguns rezando contritamente. E, lá na frente, o chicote comeu mais uma vez.

- Pára com isso, ô mardito nanico dos infernos!

Quase ninguém ouviu, a não ser o próprio Manezinho e um ou outro soldado, e o Albieiro, que fazia o papel do apóstolo Pedro. Rajão cuspia fogo pelos olhos e bafo pelas ventas. Manezinho deu um tempinho, um sorriso amarelo, e lasca sem dó outra chicotada que estalou na poupança quase nua do JC.
A dona Cris, cozinheira das mais afamadas, dona do restaurante "Garrote Moído", que fazia o papel de Madalena, estranhou aquela cena fora dos conformes. A Cris Candanga, que fazia o papel de Maria, a mãe do Homem também estranhou a afronta ao filho. O Fábio Marchioro, o apóstolo João, ficou com um pé atrás ao ver a cena.
Foi aí que desandou tudo. O Rajão, no desespero, jogou a cruz prum canto e pulou pra cima do Manezinho. Este, vendo que correr pra baixo era melhor que correr pra cima, desembesta ladeira abaixo, com o Cristo nos calcanhares. Dona Cris, adivinhando que era briga, corre atrás dos dois para apartar a desavença, seguida logo atrás por Maria toda desconsolada. Os apóstolos Pedro e João, entendendo tudo, vendo que o negócio ia ficar feio, levantam as saias e correm também para não deixarem ninguém matar ninguém em plena sexta-feira santa. Pe. Anacleto, quando descobre que alguma coisa não ia bem, vendo a frente sem o Cristo, levanta a batina até a cintura e se manda atrás dos três querendo esclarecimento. Os atores, que nem ensaio tiveram, pensando que aquilo era parte da encenação, se mandam também ladeira abaixo tropeçando uns nos outros. E o povo, ah, o povo! Assim que os primeiros da procissão dão com aquela correria, vêem o Pe. Anacleto correndo atrás de Jesus Cristo, começam a se perguntar - o que que se sucede?. E, sem entender nada, tratam de fazer meia volta e desabam também a correr ladeira abaixo. Dona Sterzinha, dona Eunice e a diretora Sandra Falcone perderam meninos no meio daquela embolada toda. Uniforme branco de meninos do Ateneu perdeu a cor. Prefeito Waldomiro gritava "calma, gente!" mas, por via das dúvidas, sem entender o motivo da correria, resolve ligar o motorzinho das canelas ladeira abaixo. Felipe de Paula perdeu-se do Antonio Mariano quando tratavam dos finalmentes para trocar umas galinhas magrelas por 10 jacás de milho. Coroné Hélio, no meio da poeirada toda, ficou rodando, meio tonto, e gritando "benhê! Cadê você!". Seu Zé Braz só aí é que parou a discussão com dona Judith, porque um se perdeu do outro, caçando refúgio para se esconder do perigo iminente. O retratista Barrox foi o único que não correu. Ficou no meio daquela gentalha em fuga, triste, olhando pra sua triplex despedaçada no chão. Foi assim que a procissão se inverteu. No lugar de chegar lá em cima do morro, foi parar no barraco do Manezinho. Pe. Anacleto chegou a tempo, ainda, de livrá-lo das garras do Rajão que, com uma mão só, segurava-o pelo pescoço, sugigando-o contra a parede, enquanto seus pezinhos balançavam a meio metro do chão.


Parte 3 – por
ericantunes@irapida.com.br (Érica Antunes)

A DOR DE BARRIGA DO ORICO

— Traiz papel aí, anda logo!

Baita dô de barriga levô Orico, o contadô de causos, a entrá lá no mais famoso banheiro de Tabuí: o do boteco do Sô Josué. Boteco era coisa linda, lotadim de varejeira dentro da vitrina de pão com mortandela e lá no canto o varal das lingüiça da Dona Cris.
Sempre co lápis atrais da oreia, e nem fio de portugueis era, Sô Josué sonhava transformá boteco em venda. Enquanto servia Providença pro cego Dió, que pregava, pregava, mais no fim do dia não deixava de enchê a cara de canjebrina, falava do dia que ali naquele lado ficaria os saco de arroiz, batata, feijão e farinha. Fumo de corda no balcão, lataria na pratiera azul.

— Traiz papel aí, ó Josué, anda logo que a coisa aqui tá é feia...

Sô Josué de cara presa foi levá papel:

— Ocê divia era limpá co jornal.

Lá de dentro partiu a voiz do Orico:

— Pois si foi aquele chouriço que ocê deu preu comê que feiz isso...

Dona Cris, que até então tava quieta no canto, morrendo de vontade de ri, franziu a testa como sempre faiz quando vai dá bronca:

— Eia, minhas lingüiça é que não foro nada!
Foi aí que Manezinho entrou na história. Dona Ivani, toda religiosa, mais debaxo dos véu uma fofoqueira do caramba que não saía da janela, toda hora a cortininha mexia, mudou pra Tabuí.
Conhecia Manezinho lá da otra cidade, ficou de boca aberta quando viu o moço da voiz fininha:

— Intonci ocê veio pará aqui, Manezinho?

Manezinho desconversô, chacoalhô a cabeça e foi imbora.
Dia seguinte cidade intera sabia: Manezinho tinha voz de mulherzinha, divia sê boiola, ninguém macho andasse co’ele não.
Mais sempre tem um que gosta de inflamá, e dessa veiz foi o Zé Braz, irritadiço até cas trombança de bunda da Dona Judith:

— I si nóis tirasse isso a limpo? Vamo fazê o moço falá!
— Mais o moço num abre a boca nem que a vaca tussa desde que chegô.
— Agora anda até cumas foia di papé pra inscrevê o que qué sabê...
— Nóis dá um jeito, cês vão vê.

Notro dia, fim da tarde, povo de Tabuí suado da roça se reuniu no boteco. Sô Getúlio, otro religioso nas aparência e mais "amigo" do Manezinho, foi lá convidá o rapaiz pruma Providença:

— Meu amigo Manezinho! Vamo lá toma uma Providença, ómi!

Lá entrou Manezinho todo sujo do cabo da enxada carregado dia intero. Logo de cara viu coisa esquisita, bando de gente oiando pra cara dele. Até o Padre Anacleto se meteu no canto das lingüiça.

— Como é que vai, Manezinho?

E Manezinho feiz positivo com a mão.

— E essa força, ómi?

Balançô a cabeça.

— Perdeu a língua, fio de Deus?

Nem respondeu. Tomô a talagada da Providença e se mandô rapidim.
Zé Braz desanimô:

— Fiadaputa, não falô.

Nisso quis falá o Orico contadô di causos:
— Já sei o qui fazê.

E foi-se imbora deixando todo o mundo na curiosidade.
No otro dia tinha comício na praça da igreja. Coroné Hélio preparano eleitorado pra tirá prefeitura do Waldir do Val. Oposição da braba. Tabuí cheia de fazê gosto, todo o povaréu ali debaixo do luar e do lampião rodeado de mariposa que faziam a Euriquinha se escondê de medo debaixo da saia da mãe.
Dona Sterzinha tinha despachado o gêmeo Alvim lá pro sítio do avô, moleque endiabrado demais da conta. Inda assim sobrô Pedrim, que nem gostava de banho e vivia de zóio grudando, um porco.
Orico se aproximô do diabinho:

— Qué ganhá uma sodinha?

Moleque oiô e riu fazendo sim com a cabeça.

— Então me faiz um favô...

E carregô o menino lá pra dentro da igreja, Dona Sterzinha nem viu, era de esquerda e tava de oio no candidato. Orico engambelô guri:

— Óia, ocê vai chegá perto do Manezinho e vai fazê cócega no sovaco dele com essa pena aqui.

Diabinho feiz cara de diabinho e partiu cas mão pra trás, escondendo a pena.
Daí que Manezinho tava cos braço pro alto, cheiro inté catinguento desprendia dali, mais povo de Tabuí, à exceção de uns treis ou quatro gato pingado que comprava Gessy e Lux Luxo, já tava acostumado.
Pedrim foi devagarim, bem na hora que o Coroné Hélio pediu minuto de silêncio pra lembrá o senhor seu pai, desbravadô dos mato que originô Tabuí, tascô lá no sovaco do Manezinho a pena.
Primeiro Manezinho caiu na risada e povo todo olhô prele. Depois saiu correndo atrais do moleque, voz fininha, fininha:

— Seu fiadaputa dum capeta! Vorta aqui qui vô pegá ocê de jeito.

Dona Sterzinha se defendeu:

— Fiadaputa é ocê, cadê o respeito comigo?

Povo ficô admirado: não é que a voz do moço era fininha memo? Parecia inté com a da Lu da Legião de Maria!!!
Falatório se alongô. Povo intero comentando:

— Voiz de muié memo, ocê viu que coisa, dotô Rodrigues?

Dali pras otra maldade foi só um pulo:

— Pois é, i ocês notaro qui iele inté parece que tem peitinho?
— Já ovi falá qui iele anda di zóio no Sô Fábio!

Sô Fábio desviava:

— Sai fora, diabo, pra riba de mim é que não, violão!

Zé Braz, inconformado ainda com o fracasso da tentativa lá no boteco do Josué naquela primera veiz, tacô fogo:

— Pois vamo discubri isso intonci, uai!
— Mais di qui jeito, ómi?

Agora foi a veiz do Zé Braz fazê ar de mistério e saí deixando todo mundo sem sabê seus plano.
Pedrim foi contratado di novo:

— Ô moleque, qué ganhá um pão com mortandela?

Moleque tava já mal acostumado:

— Só se fô cuma sodinha junto.

Zé Braz coçou a cabeça, moleque disgranhento, mas topô.
Foi assim que, no otro dia, no comício do Waldir do Val, que falava empolgado dando banho de cuspe nos cidadão de Tabuí, aconteceu o inesperado!
Pedrim chegou por trás de Manezinho e baixou suas calça lá no pé! Muierada pois mão na boca, zóio bem arregalado, Lu que era moça pura virô cara pro otro lado, gritaria foi geral: PINGOLIM DO MANEZINHO TAVA DESENGAIOLADO DE TUDO!!!!
Manezinho partiu atrás do Pedrim cas calça arriada e o coitado do pingolim foi fotografado em plena corrida pelo famoso Barrox, que tirava retrato da cidade intera pra contá história dela.
O inesperado memo ainda estava por vir.
Manezinho ficô tão desesperado, tão desesperado, que correu pro primero lugar que achô pela frente e outro não foi senão o boteco do Sô Josué. Como o povo todo tava na praça, boteco tava vazio, de modo que ninguém viu o moço entrá.
Manezinho se assustô ao ver Dona Cris cozinheira no meio das lingüiça e, morto de medo que ela o visse de calça arriada, ela que era brava demais da conta, ficô escondido atrais do varal.
Acontece que bem nessa hora o povo começô a entrá no boteco. Providença daqui, pão com mortandela dali, e o comentário geral:

— Mais até que o cabra tava bem servido de cabo...
— Queria sabê onde é que ele se entocaiô...

Manezinho iscuitava tudo, bem escondido atrais do varal.
Foi então que Dona Cris apareceu e ZÁZ!!!! cortô o pingolim do Manezinho pensando que era lingüiça.
Manezinho delirô de dor mais nem gritô por causa da voz fina de mulherzinha e, agora por cima, estava sem pingolim.
Saiu de fino pela porta do lado e disparô, com a mão lá, lá pro dotô Rodrigues dá um jeito de costurá o estrago. Muierada da vida, que não sabia de nada, descobriu Manezinho e saiu atrais:

— Gostei de vê, bitelão!
— Tô precisando de um ómi, passa lá em casa!

O pobre nem oviu nada. Sumiu no mundo.
O fato é que o pingolim foi cortado e servido pro Orico contadô de causo, que tinha pedido uns petisco.
Orico comeu tudo e ainda comentô a mão boa e o tempero da Dona Cris.
Foi desse jeito que a dor de barriga atacô e lá ficô ele, até agora, de castigo na privada do boteco!
Coitadins do Orico e do Manezinho!

Parte 4 – por jpveiga@uol.com.br

O renascer de Manezinho (JPVeiga)

Doutor Rodrigus era bom mesmo! Um homem da Ciência e muito além do seu tempo. Minguando pela falta de uma clientela mais abastada, tratava de se dedicar aos estudos naquele povo; porque o povo era pobre e pobre tem de tudo; tudo no pobre é complicado, esquisito, inusitado, feio, sujo e de se estudar. Mas povo pobre é sempre teimoso na cura. A casa do Doutor Rodrigus não era bem daquelas nos moldes usuais, com cadeiras, mesas, cama, guarda-roupa etc., cada qual no seu lugar e com a sua função específica; mobília existia sim, é verdade, mas tudo encostado nas paredes, na serventia de "estante" para os livros de Medicina; e mais e mais livros disso; milhares deles espalhados por todos os lugares, pelos corredores, do chão até o teto.
Quando Manezinho, "despingolado", irrompeu na casa do Doutor Rodrigus, cara de desespero e dor, tropeçando na livraiada e com as mãos ensangüentadas segurando a região genital, o médico ergueu as vistas do alfarrábio empoeirado que estava a ler e, dali mesmo, seus infalíveis olhos clínicos formularam-lhe a hipótese mais provável de diagnóstico: Hummm... parece um caso de pingolinectomia traumática...

- Deixe-me ver isso, seu Manezinho...

O coitado tirou as mãos do que lhe restava da genitália.

- ... e total! - arrematou.

Manezinho, chorando, implorou:

- P'lamô di tudo qui é sagrado, dotô! Dê um jeito, faiz quarqué coisa! Co'essa minha voizinha de pilha fraca, o povo já dizendo qui eu tô di peitinho e ainda por riba di tudo despingolado, eu vô é virá fruita... Ai! Ai! Eu vô é mi matá!
- Calma, seu Manezinho... - ponderava o médico, enquanto apertava umas pinças para estancar aquele rio de sangue - ... diga-me, onde está a substância perdida?
- Qui "sustância", dotô?! O sinhô tá falano do meu pingolim? Sei lá! Dispois qui Dona Cris cortô ele... bão, si num foi gente qui cumeu eu acho que argum cachorro morto di fome levô pra mode si sustentá cum ele... E eu vô é mi matá! Fruita é qui num viro não! Ai!

Pensemos nisso: O que um médico, cientista antes de tudo, não faz para honrar o seu juramento...

- Bem, seu Manezinho, considerando que o diâmetro do cotó que sobrou me sugere uma anatomia de dimensão muito "avantajada", acredito que possa fazer algo pelo senhor. É experimental, não garanto sucesso. Além disso deverá ser um absoluto segredo entre nós dois... O senhor concorda? É algo ético...

Esperança e Luz na Vida de Manezinho!

- Inda ficô um "tico" memo... Vai qui dá di brotá... Faiz quarqué coisa dotô! O sinhô é a minha sarvação!
- Então venha... - disse o médico.

Foi arrastado um baú que estava meio de canto, erguendo-se um alçapão oculto no assoalho. E desceram pela escada, com Manezinho atrás a balançar aquele monte de pinças presas no cotó...
O porão da casa era o laboratório secreto do Doutor Rodrigus e onde ele fazia suas experiências. As luzes foram acesas. Manezinho, ao ver aquela parafernália de vidros, metais brilhantes, um outro tanto de coisas em ebulição e uma mesa de mármore no centro, já desconfiava que ali era o Inferno e o Doutor se-lhe revelava o Próprio:

- Ói dotô, pensano mió, inté qui sê fruita num vai se ruim não... é caso de num ligá pra mode si acostumá... Padre Anacleto falô qui é mió si largá da carne pra num vendê a "arma" pro Canhoto...

O médico, com o espírito já irradiando a eletricidade da Ciência, nem atinou para as proposições teológicas de manezinho; abriu uma geladeira e deu as explicações:

- Você se lembra do "Cerquilho", aquele garanhão crioulo do Coronel Hélio Freire e que morreu na semana passada? Pois bem. O Coronel fez a gentileza de doá-lo a mim, para estudos... Eu retirei algumas partes do animal e, pelo que vejo, a mais adequada a você é essa aqui. Olhe que beleza...

O Doutor Rodrigus havia conservado a genitália do cavalo e garantia que anatomicamente as dimensões não eram muito diferentes daquela que Manezinho anteriormente ostentava. Tentaria um transplante e, se desse certo, até ficaria "melhor" que antes.
Provavelmente foi esse argumento que arrancou de Manezinho o "sim" à Ciência e o seu "não" aos sermões do Padre Anacleto; já que metido no meio do inferno, bem que poderia planejar, devidamente "armado", a plantação de uns cornos de vingança em muita gente. Assim, entregou-se nas mãos do médico e ao mundo da anestesia...
Certo é que Manezinho ficou "internado" aos cuidados do genial Doutor Rodrigus e, depois de algum, tempo teve "alta". Foi morar lá na zona da cidade, onde a mulherada da vida o ajudava na recuperação e na fisioterapia que lhe foi prescrita...
O falatório começou. Diziam que o Doutor Rodrigus tinha um "santo remédio" para renascer pingolim... Lá da zona vinham notícias de um Manezinho, exuberante, a dar gostoso cansaço na mulherada que sorria feliz; e ainda algo (muito!) "melhorado". O povo masculino, a pretexto de uma dor aqui ou outra ali, então começou a freqüentar com mais assiduidade a casa do Doutor Rodrigus, e até que já se embolava, espremendo-se todo numa confusão de empurra-empurra, desde a rua, pela disputa de suas prioridades ou mais urgências no atendimento.




Parte 5 – por
jpveiga@uol.com.br (de novo!)

A Euriquinha sumiu!

Atrás do balcão, meio corpo sobre cotovelos calejados disso, Seu Josué contava as horas tamborilando, na altura da boca, dedos provocativos do bocejo que nunca lhe saía. Vez ou outra movia os olhos à frente, na direção dos copos sujos sobre o balcão; ou ao lado, para o prato com as rodelinhas de chouriço, cada qual se acasalando com meio ovo cozido, lado gordo à mostra. "Lispectoriano", para ele, bem poderia ser o nome do xarope infantil que a catarrenta da Euriquinha tomava, mas assim mesmo ficava a imaginar coisas do ovo: "Tome arma nas anca, seus ovo encapetado sem-vergonha..."

- falando do palito de dente que neles espetava - "Ocêis fica tudo aí de abusá na esfregação c'as mulatinha, né? Pois agora ocêis casa na marra, seus vadio, que aqui o delegado é eu! Bem se vê que ocêis é tudo fio daquela mãe d'ocêis, cheia das falação, seus safado!".

As moscas, "ad hoc", testemunhavam o matrimônio e logo voavam para a festa, ali nos copos babados de "Providência" e onde ardejavam na bebedeira até a morte... "Êta cachaça cangacera braba! Esse timbó aí ceva e mata... sô...". Arrepiava-se: "Sinar é do padre e do fio e... (rezando contra o patrimônio?!) ...mais quem qui num vai é morrê um dia, uai! E, domais, bem feito pra quem faiz é desfeita dos meu coqueter pra mode ficá é só de babá na cana!".
Nesse momento, lá da calçada veio um ruído "tec-tec-tec-tec-tec" há muito conhecido. Era o Cego Dió, já aparecendo na janela do botequim e a declamar em alto som os seus poemas; um novo profeta, que tateava com a sua bengala na procura do melhor chão para semear a mensagem dos seus sonetos, e bem "vendo" que seria por ali mesmo a plantação e a colheita... Mas, desta vez, o "tec-tec" do cego se acompanhava de um outro, desconhecido, mais baixinho, mais fininho, quase um "tic-tic-tic-tic-tic", de formiguinha.
O Cego Dió passou; o motivo do "tic-tic" veio atrás dele. Cinco ou seis palmos de um motivo suficiente; cabelos pretos e um nome: Euriquinha. A menina magricela, catarrenta, seguia tropeçando atrás do Cego Dió, a bater no chão com uma varinha de taquara; imitava-o, resmungando palavras desconexas, com jeitinho de quem fica de cara para o sol, de olhinhos espremidos e um sorriso enormemente arteiro.
Seu Josué, tratando de esconder os copos sujos, ralhou:

- Ô minina capeta! Largue de arremedar o cego que Deus castiga! E se num castigá eu conto pra Dona Sterzinha e ocê vai é vê istrela na lambança de côro qui vai cumê nessa tua carne seca, danada!
Os olhos arregalados de Euriquinha, sorriso sumido, faziam a apelação por uma pena alternativa...

- Oi'qui, minina, eu num falo é nada não pra sua mãe não... mais ocê vai é inté na casa de Dona Cris e pega os quitute que eu incumendei pros fregueiz di mais tarde.

Acordo fechado! Mas como era de se esperar...

- Pode ir cum Pedrim? Ele tá é lá fora! Pode? Dexa, vai? Nóis dois vai é di dois. Vortamu é mió! Pode? Pode? Pode? E quem é qui vem qui o sinhô num qué nem servi essa lingüiça véia di porco preto qui tem zóio marelo? Quem é? Quem é?
- Num é lingüiça di porco preto, viu! Vai é logo, ô distrambeiada!

A menina escondeu a varinha de taquara ali no balcão e correu para o outro lado da rua, faiscando olhinhos diabólicos nos cochichos com o irmão, ambos sumindo na direção da casa da Dona Cris.

Bem, depois do fiasco do Prefeito Waldir do Vau, no seu comício, diziam que a cena do Manezinho sem calças fora armada pelo Coronel Hélio Freire, que culpava o prefeito por desrespeitar a memória de seu pai. Padre Anacleto já achava que a briga iria mesmo acabar demandando seus bons ofícios, no cemitério; também não queria ficar "indisposto" com nenhum dos lados. Assim, propôs mediação eclesiástica e tratou de organizar um encontro. O problema: nenhum dos dois era lá muito de rezas; pensavam "melhor" invocando outro tipo de "Providência" e assim o botequim fora escolhido como campo neutro. Padre Anacleto, às turras, consultou o bispo e foi "recomendado" a aceitar... Além do prefeito, do Coronel Hélio Freire e do Padre Anacleto, ainda viriam: Doutor Rodrigus, um médico para eventualidades; Coronel Antonio Mariano, amigo comum das partes, e Seu Zé Bráz, o suposto intermediário na trama. Por fim, contava-se ainda o povo curioso e a presença indispensável do fotógrafo Seu Barrox, para eternizar o momento, mesmo que fosse com a tralha velha do equipamento sobressalente; serviria até que o "novo" fosse consertado.
Eram esses os fregueses, gente importante, e a quem não se poderia, a casa honrada, oferecer simplesmente aquele "famoso" chouriço com ovo.

- Vixe Dona Cris! Pra mode di qui é essa muntuera di sargadim? Vai é acuntecê festa lá na casa daquelas muié cheia das rôpa bunita, vai é? Ói só Pedrim!

Dona Cris, gaúcha além dos pampas, desde cedo já estava a amassar batatas, a refogar, a enrolar, a empanar, a fritar, a assar... e a reclamar, resmungou:
- Bá, guria! É para a reunião hoje, lá naquele "galpão" do copo sujo. Farrapos mortos de fome! Nem o mate já me carrega este cheiro que me enoja... barbaridade...
- Hahaha! - sorriu Euriquinha - Ocê fala é isquisito, Dona Cris. Seu Josué mandô é qui é pra nois dois carregá os sargadim inté lá... Inda bem qui nóis veio é di dois... Num é Pedrim? - arrematou a menina, despertando o irmão com uma cotovelada.

E um par de crianças, unido pelas alças de uma grande sacola, pôs-se a caminhar na direção do rio.

- Óia, Euriquinha, eu num tô é achando isso lá muito é bão não... - disse Pedrim.

Euriquinha, testa suada e já apelando para as duas mãos na alça da sacola, não deixou por menos:

- Ocê é um cagão medroso qui mija é na cama! Seu Pedrim Bundim! Seu Josué falô: "...pros fregueiz di mais tarde..." e inda farta é umas hora. Já disse pra ocê qui nóis vai é só inté o rio pra mode fazê "recreio" co'esses sargadim. É muntuera danada di tanto sargado qui tem! Óia só! Inté cachorro vai é vumitá di tanto cumê os restoio. Nóis vai é lá, senta, come uns sargadim, óia o rio, os passarim... Dispois nóis vorta é bem ligero...

E foram. Sentaram-se na beira do rio, cansados; os sapatinhos lhes queimavam os pés; sem eles era melhor; comeram, jogaram pedras na água, voaram com os pasarinhos e, embalados por eles, dormiram; sonharam e continuaram a dormir...

- Pedrim!!! Acorde!! Ô muleque qui dorme mais qui gato véio!! Tá iscuro...

Pedrim acordou ensaiando um choro:

- A curpa é di ocê, sua magricela catarrenta! Agora nós vai é apanhá da mãe...
- Cala a boca, mijão! Nóis vai é cortá caminho no roçado inté distráis da igreja. Cata aí a arça da sacola e si vamu!

Voltaram, mas na pressa se esqueceram dos sapatinhos...

Seu Josué, de tão nervoso, já empastelava a gravata de missa com o excesso da glostora que lhe descia dos cabelos, misturada com o suor desaguado na camisa. Casa cheia, garrafas de "Providência" se esvaziando e nada dos salgadinhos. A freguesia reclamava do "chefe" do serviço no botequim, que já ganhava chifres e cheiro de bode, o expiatório das culpas de uma briga política; os até então inimigos estavam próximos de se irmanarem em causa comum...
Dona Cris, muito zeloza, cuia de chimarrão numa das mãos e garrafa térmica na outra, entrou no botequim para controlar a qualidade do produto fornecido e receber a conta... Seu Josué nem lhe deu tempo para abrir a boca e foi gritando:

- Donde qui tá é os meu quitute, muié?!
- Bá... mas de que é que tu falas, bugre? Já faz horas que entreguei aos gurís! Eles não chegaram? Barbaridade...
- Aqueles raio de minina endiabrada e do canhoto do Pedrim se escafedero é cum eles!! - concluiu Seu Josué.

Silêncio geral; dezenas olhos e ouvidos nas explicações trocadas. Mas foi Seu Zé Braz quem cuidou de "temperar" o clima:

- Eu vi eles... os dois táva é di arrastá uma sacola nas mão... indo é lá pras banda do rio... já faiz tempão...

Rio!! - todos ao mesmo tempo. Lá tem é jibóia qui ingole inté boi!! - falou um. Naqueles capão di mato tem é urutu cruzero! - disse outro. Vige Santa!!... arrematou um terceiro. Vamu avisá Dona Sterzinha e saí pra mode precurá os dois!! - enfim.
A porta era pequena, mas deu vasão àquele bolo de gente que corria em apressada procissão noturna, na direção do rio. Mãe chorando, padre confortando, beata rezando, coronéis no comando, peãozada na frente, o povo embolado atrás...
As ruas ficaram vazias.
E na beira do rio só acharam alguns sapatinhos largados; um aqui, outro ali... misturados no capim amassado...
Mãe desmaiada, padre chorando, beata ajoelhada, coronéis derrotados, peãozada cabisbaixa; agora, o povo era só um bolo abatumado, que voltava pelo mesmo caminho; subida de um calvário gemido, lerdamente...
A metade feminina foi para a igreja, a metade masculina para o botequim; cada qual fazendo o papel exigido pelas circunstâncias... Menos Dona Sterzinha, que resolveu antes amaldiçoar a sua desgraça, de boca cheia, com cachaça, e bem amaldiçoada.

- Arre, Pedrim! Chegamo. Donde é qui tá tudo mundo? Ô Seu Josué! Cadê o sinhô?
- Deve di tê ido é tudo lá na igreja, Euriquinha...
- Num foro é não. Nóis num vimu eles no caminho e a caxa di tirá "frotrogafia" do Seu Barrox tá é ali co'as perna isticada. Óia, vamo é arrumá esses sargadim nos prato pra mode Seu Josué num ficá é brabo c'a gente...

E ocê trata é di lavá os copo sujo di cana...
*
- Óia ocêis aí! - foi a exclamação de Euriquinha quando o povo entrou no botequim - Nós chegamo c'os sargadim e num vimu é nem sombração docêis! Donde é qui ocêis si metero, hein? - foi a pergunta que terminou a frase, misturada com um já conhecido sorriso na boca da menina a abraçar o irmão de avental, maior que ela, mas como fosse ele o menor.

O "onde", o "quem", e o "nóis o quê?!", pensado na resposta coletiva, não foi dito. Abraços da mãe, mais choro, risadas molhadas e beijos nos filhos; olhares de toda espécie, principalmente daquela espécie desfavorável ao feliz encontro, sob o ponto de vista das crianças...
Dona Sterzinha parou um olhar que lançava aos céus em agradecimento, no meio do caminho, pois vira no percurso, no canto do balcão, aquela varinha de taquara deixada pela menina horas antes...
O abraço virou agarro; sumiram os lábios que beijavam e apareceram dentes que se mordiam; a mão do afago transformou-se na carrasca a empunhar o açoite. Mas antes da execução, disse Euriquinha, já mal engolindo o choro e o catarro do nariz:

- Num bate não, mãe! Co'essa varinha não! A varinha é pra mode aprendê "inxergá" qui nem o Cego Dió. Se a mãe batê cum ela ni nóis, o choro vai é ficá grudado nela e dispois num vai é dá pra "prantá" e nem "coiê" uns verso bunito. Vai é sê só secura... di tristeza mãe... Bate co'as sandáia...

A mãe não bateu; nenhuma o faria. Dona Sterzinha chorava como se houvesse levado a maior surra da sua vida; surra na alma pela só possibilidade de ter perdido aquela menina. Pedrim veio procurando achego, junto da mãe e da irmã; os três já se embolavam por ali mesmo, particularmente em afagos recíprocos no meio do povo que já se punha a dar vivas a todos os santos que conheciam.
A festa atravessou a noite. Preto, branco, mestiço, criança, cachorro, todos se embolando ao som da sanfona, da zabumba, do pandeiro e da viola. Situação, Oposição e povo confraternizados na felicidade, na "Providência" e nos salgadinhos. Até o Padre Anacleto, com o bucho repleto de guloseimas, também "benzeu o santo", generosamente, aproveitando para também abençoar o sono de todos que ja caíam embriagados pelos cantos.
Casa cheia, dança, cantoria, embolação, final feliz.
E esse foi mais um retrato do Seu Barrox. Mais um, entre tantos, que ficaria pendurado para sempre na parede daquele botequim.